#2 Diário do Agricultor: A legislação

Portugal tem uma história de cultivo de cânhamo muito própria e é por isso, um tema cujo desenvolvimento requereria uma enorme capacidade de investigação histórica. Por essa ser uma temática exaustiva e que cai fora do âmbito do Diário do Agricultor, estamos assim motivados a deixar este importante trabalho à consideração dos historiadores e outros aficcionados, sob pena de sermos incapazes de elencar de uma forma mais exaustiva a presença e contribuição do cânhamo para a história de Portugal.

Os primeiros passos do cânhamo com Portugal na CEE

A adesão de Portugal à CEE é uma das consequências do 25 de abril de 1974. Com ele, Portugal perdeu o mercado colonial e viu-se obrigado a centrar mais a sua atenção no mercado europeu. Para isso foi necessária uma grande transformação a todos os níveis e em 1977 é feito o pedido de adesão à CEE. É o Despacho Normativo n.º23/99 que vem dar cobertura legal ao disposto nos seguintes Regulamentos da CEE:

  • n.º 1308/70, do Conselho, de 29 de Junho, que define as regras da Organização Comum do Mercado do Linho e do Cânhamo, institui uma ajuda ao linho e cânhamo produzidos na Comunidade Europeia;
  •  n.º 619/71, , do Conselho, de 22 de Março, que fixa as regras gerais de concessão da ajuda para o linho e cânhamo em palha, prevê um regime de controlo administrativo que garante que o produto para o qual a ajuda é pedida corresponde às condições exigidas para a concessão desta;
  • Regulamento (CEE) n.º 1164/89, da Comissão, de 28 de Abril, que estabelece as normas de execução respeitantes à ajuda para o linho e cânhamo, com a última redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CEE) n.º 2814/98, da Comissão, de 22 de Dezembro, para prevenir a possibilidade de abusos, prevê que cada Estado membro estabeleça a quantidade mínima de sementes por hectare compatível com as boas práticas da cultura de cânhamo;
  • Também para verificação do respeito das condições previstas no n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento (CEE) n.º 1164/89, da Comissão, de 28 de Abril, se estipula que a declaração de cultura de cânhamo deve ser acompanhada das etiquetas oficiais das sementes utilizadas;

O Despacho Normativo n.º23/99 consagra assim que a candidatura à ajuda à produção de cânhamo será iniciada em cada campanha com a comunicação, por escrito, ao Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola (INGA) da intenção de cultivo desta espécie vegetal, com identificação das áreas e número de parcelário das parcelas agrícolas de instalação da cultura, até 15 de Dezembro anterior ao início da mesma, bem como fixa em 50 kg por hectare a quantidade mínima de semente compatível com as boas práticas da cultura de cânhamo.

Adicionalmente, cria a figura da declaração de cultura a preencher em modelo próprio do INGA, com a inscrição da superfície de germinação, cuja entrega nas entidades credenciadas pelo INGA deve ser realizada até 31 de Julho do ano da campanha a título da qual a ajuda é pedida, acompanhada dos originais das etiquetas da semente certificada utilizada no cultivo. (No caso de uma mesma etiqueta se referir a sementes utilizadas no quadro de várias declarações de cultura, o original da etiqueta deverá ser anexo a uma determinada declaração de cultura, que deverá referenciar as outras declarações de cultura. Estas outras declarações de cultura deverão ser acompanhadas de uma fotocópia reconhecida notarialmente da etiqueta original, com indicação da quantidade de semente utilizada pelo respectivo produtor.)

Além disto, o pedido de ajuda à produção de cânhamo a entregar nas entidades credenciadas pelo INGA até 31 de Dezembro do ano da campanha a título da qual a ajuda é pedida deverá conter a superfície objecto de produção e ser acompanhado de fotocópia do contrato de compra e venda ou de transformação do cânhamo em palha, devendo todos os produtores, perante o INGA, fazer prova da venda, transformação ou armazenamento da produção obtida

Exclusão do cânhamo das substâncias controladas

É o Decreto Regulamentar n.º 61/94, de 12 de Outubro, que estabelece as regras relativas ao controlo do mercado lícito de estupefacientes, substâncias psicotrópicas, precursores e outros produtos químicos susceptíveis de utilização no fabrico de droga, e proíbe o cultivo de cânhamo (Cannabis sativa L) sem excepcionarem o cultivo das variedades que se destinam a fins industriais. Como produção de cânhamo para fins industriais encontrava-se, regulamentada a nível comunitário através de um conjunto normativo que estabelecia determinadas garantias tendo em consideração a natureza deste tipo de cultura.

No contexto da publicação do Decreto Regulamentar 23/99, verifica-se o reconhecimento da lícitude do cultivo do cânhamo para fins industriais bem como a comercialização de sementes de baixo teor de THC nos termos de regulamentação comunitária e vem clarificar as regras em sintonia com o disposto na legislação comunitária.

“o cultivo de cânhamo para fins industriais, das variedades de Cannabis sativa L, incluídas no anexo B do Regulamento (CEE) n.º 1164/89, da Comissão, de 28 de Abril, na redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CEE) n.º 2814/98, da Comissão, de 22 de Dezembro, as funções de controlo serão efectuadas pelo Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola conjuntamente com a Polícia Judiciária, em termos a definir por despacho conjunto dos Ministros da Justiça e da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas.”

Por sua vez, o Despacho Normativo n.º 20/2001 estabelece vários preceitos relativos às ajudas, quer aos agricultores, quer às actividades subsequentes e define igualmente as quantidades máximas garantidas para fibras longas e fibras curtas, repartidas entre todos os Estados-Membros da seguinte forma:

Fibras longas de cânhamo:

– 13800 toneladas para a Bélgica,
– 300 toneladas para a Alemanha,
– 50 toneladas para a Espanha,
– 55800 toneladas para a França,
– 4800 toneladas para os Países Baixos,
– 150 toneladas para a Áustria,
– 50 toneladas para Portugal,
– 200 toneladas para a Finlândia,
– 50 toneladas para a Suécia,
– 50 toneladas para o Reino Unido.

[Note-se que o Estado Francês (55800 toneladas) ultrapassa a soma de todos os outros estados (19450 toneladas)]

Fibras curtas de cânhamo:

– 10350 toneladas para a Bélgica,
– 12800 toneladas para a Alemanha,
– 20000 toneladas para a Espanha,
– 61350 toneladas para a França,
– 5550 toneladas para os Países Baixos,
– 2500 toneladas para a Áustria,
– 1750 toneladas para Portugal,
– 2250 toneladas para a Finlândia,
– 2250 toneladas para a Suécia,
– 12100 toneladas para o Reino Unido;

[Note-se igualmente a dimensão da proporção do Estado Francês (61350 toneladas) comparado com a soma de todos os outros estados (69550 toneladas)]

Três anos depois, é publicado Despacho Normativo n.º 18/2004, publicado pelo Ministro da Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, Armando José Cordeiro Sevinate Pinto, membro do XV Governo de Durão Barroso, que excluí o cânhamo do regime de ajuda às culturas energéticas. As culturas energéticas entendem-se como qualquer material vegetal plantado ou cultivado com a finalidade de produzir grande volume de biomassa utilizada posteriormente na produção de diferentes tipos de biocombustíveis. Caracterizam-se como espécies elegíveis aquelas com rápido crescimento, elevada produção de biomassa, tolerantes a stresses bióticos e abióticos, com baixos requisitos para pré-tratamentos biológicos, químicos ou físicos. Sem elevados requisitos de qualidade do solo, podem ser cultivadas em solos pobres em nutrientes, locais ameaçados pela erosão, com necessidade de reabilitação, ou em locais impróprios para agriculturas.

As mudanças recentes

O leitor depreenderá, da leitura desta súmula que aqui apresento, que o cânhamo nunca foi alvo de qualquer restrição regulativa ao cultivo. Apesar de reconhecer que a legislação relativa a esta actividade, não se mostrava clara, será mentira afirmar que, em algum momento temporal, o cultivo de cânhamo foi “proibido”.

No entanto, facilmente será reconhecível que a perversão relativa à falta de clareza legal relativa ao cultivo de cânhamo, trouxe constrangimentos aos agricultores que procuravam nesta cultura alguma esperança para um sector agrícola debilitado. A tendência internacional da canábis para fins medicinais, veio contribuir negativamente para um eclipsar incremental da capacidade de relacionar-se com os reguladores do sector agrícola. Este facto é justificado pela própria incapacidade do Ministério da Agricultura reconhecer legitimidade relativamente ao cultivo do cânhamo industrial, relegando as autorizações para a alçada do Infarmed.

Importa estabelecer que só com a aprovação do Decreto Regulamentar n.º2/2020 é que foi efectivamente regulamentada a instrução de autorizações para o cultivo de cânhamo para fins industriais, o que permitirá o início de trabalhos para a nova sementeira e para a colheita do ano 2021. No entanto, nunca antes o cultivo de cânhamo tinha sido sujeito a qualquer tipo de procedimento designado por “Autorização”. Era realizado através de uma notificação de cultivo por parte do agricultor, quer à DGAV quer às forças policiais.

Este diploma vem ainda atribuir as funções de controlo do cânhamo para fins industriais ao Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, conjuntamente com três forças de segurança a Polícia Judiciária, a Guarda Nacional Republicana e a Polícia de Segurança Pública em matéria de controlo do cultivo de cânhamo para fins industriais, incluindo para uso alimentar ou alimentação animal ou para fabrico de alimentos ou alimentos compostos para animais, das variedades de Cannabis sativa para a produção de fibra e sementes não destinadas a sementeira, considerando que este controlo abrange todos os campos cultivados, independentemente de os respetivos produtores estarem ou não incluídos no regime do pagamento base.

Em suma e para completar este segundo Diário do Agricultor, a CannaCasa dá também a conhecer o Despacho n.º 10953/2020 que define as competências em matéria de controlo do cultivo de cânhamo para fins industriais, incluindo para uso alimentar ou alimentação animal ou para fabrico de alimentos ou alimentos compostos para animais, das variedades de Cannabis sativa para a produção de fibra e sementes não destinadas a sementeira.

Desta forma, o Ministro da Administração Interna, a Ministra da Justiça e a Ministra da Agricultura determinaram o seguinte:

A Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) transmite por via eletrónica ao Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP), à Polícia Judiciária (PJ), à Guarda Nacional Republicana (GNR) e à Polícia de Segurança Publica (PSP) a informação recebida e avaliada relativamente aos pedidos de autorização deferidos.

O IFAP define e executa as ações de controlo nos campos de cultivo autorizados, atendendo em particular às exigências previstas no Regulamento Delegado (EU) n.º 639/2014 e respetivas alterações, podendo, se for o caso, recorrer para o efeito ao apoio da GNR ou da PSP.

A PJ, através do seu Laboratório de Polícia Científica (LPC), realiza as análises das amostras resultantes das ações de controlo para quantificação do teor de THC.

A GNR e a PSP, nas respetivas áreas de atuação, são responsáveis pela verificação e controlo do registo de produção e da rastreabilidade dos lotes produzidos.

As não conformidades detetadas pelo IFAP são comunicadas, quando de âmbito criminal, à PJ, e, quando de âmbito contraordenacional, à força de segurança territorialmente competente.

A DGAV, o IFAP, a PJ, a GNR e a PSP devem, no prazo máximo de 28 de Novembro, celebrar protocolo onde sejam indicados os pontos focais de cada entidade e, de forma detalhada, os meios de articulação entre si.

Peço desculpa aos leitores pela extensão do artigo, pelo que para compensar tal ousadia, espero ter sido claro e sucinto na escolha e explicação da legislação nesta segunda edição do Diário do Agricultor. Desejo a todos os nossos associados e apoiantes da CannaCasa uma óptima semana e agradeço a todos vós o apoio que têm sido nesta jornada e caminhada na promoção do cânhamo industrial e no apoio a este promissor e interessante sector.

Cumprimentos,
João Costa